quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Eleiçoes com sabor amargo

23 de Enero, bastião da revolução bolivariana

Pouco depois, às três da manhã, começava a mobilização para as eleições regionais. No pátio da Casa Freddy Parra, sede da CSB, vários companheiros engatilharam dezenas de foguetes. Às três em ponto, os céus de Caracas explodiam com milhares de rebentamentos. É assim que os bolivarianos despertam os eleitores que começam a votar a partir das seis da manhã. Às quatro, nova rajada de foguetes e desta vez acompanhada por trombetas. Com amplificadores fixos ou com camionetas percorrendo as ruas, soava o toque militar para acordar. Depois, o hino das FARC, do ELN e da Venezuela.

Às cinco, uma hora antes da abertura das mesas, desloquei-me à biblioteca do sector La Cañada, no 23 de Enero. Estava uma dezena de pessoas. Entrevistei algumas delas que me explicaram a necessidade de votar cedo para dar tempo a outros. Uma estação de televisão de uma das zonas mais pobres de Caracas apareceu com todos os seus repórteres vestidos com uniforme militar e com lenços ao pescoço com estrelas vermelhas. Num canto, um homem gritava que estas eleições eram importantes para o país e para o mundo. "Porque este processo vai estender-se por toda a América Latina!". Junto a um muro, havia um jovem cuja cabeça cambaleava ao ritmo do sono. A mãe contou-me que o tinha ido buscar a casa para votar bem cedo. E a pouco e pouco a fila foi crescendo pela Praça Manuel Marulanda. Poucos minutos antes da abertura dos portões pelos militares que os guardavam estavam cerca de 60 pessoas à espera para votar.

Depois segui para outro ponto de votação. Passando pelo mural de Emiliano Zapata, encontrei uma escola primária com uma fila com cerca de cem pessoas. Às seis, quando abriram os portões, uma nova salva de foguetes. Entretanto, ao longo de todo o dia as ruas encheram-se de gente. Às 12 horas, em frente ao Liceu Fajardo, no 23 de Enero, assisti à chegada de Hugo Chávez. Centenas de pessoas esperavam-no ao grito de "Chávez amigo, o povo está contigo". Em todo o país houve uma participação pouco usual. Normalmente, não passa dos 40 por cento. Desta vez, ultrapassou os 65 por cento. Não admira, pois, que tenha havido centros de votação que fecharam cinco horas depois das quatro da tarde, hora oficial de encerramento das urnas. Algo que não agradou à oposição que queria impedir o que está legalmente estabelecido. Os locais, em que às quatro da tarde haja filas para votar, só podem encerrar quando não houver qualquer eleitor.

Mas o sorriso dos pivots do telejornal do canal privado Globovisión não enganavam. Não vinham aí boas notícias e a paciência ia acirrando-se. Aqui, as sondagens à boca das urnas não são permitidas e só se podem difundir resultados depois do comunicado oficial da Comissão Nacional de Eleições (CNE). Por volta das 11 horas, uma representante leu-o e confirmou o que desconfiava. O Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV) e os seus aliados perderam a região de Caracas (Distrito Capital), perderam Miranda e não conseguiram ganhar Zulia. Ou seja, os três Estados mais populados. Contudo, nenhuma análise pode esconder que a maioria absoluta das regiões continuará a ser gerida por governadores bolivarianos. A oposição ganhou seis Estados – Distrito Capital, Miranda, Carabobo, Nova Esparta, Zulia e Tachira – contra os 16 ganhos pelos candidatos apoiados por Hugo Chávez. Em Falcón, onde havia estado um fim-de-semana em Coro, ganhou Stella Lugo, a esposa do actual governador e na região de Caracas o único municipio ganho pelo PSUV foi Libertador, onde vivo e onde se encontra também o bairro 23 de Enero. Por curiosidade, houve mesas neste bastião do processo em que os candidatos bolivarianos tiveram mais de 90 por cento. Numa delas, Aristobulo, candidato do PSUV a governador derrotado, teve 1670 votos contra 8 do opositor vitorioso Ledezma.

Ainda assim, foram resultados amargos. Quando a representante da CNE acabava de ler o comunicado começavam a rebentar foguetes por toda a zona baixa da capital. Os ricos festejavam a vitória dos seus candidatos. Aqui, no dia seguinte, os donos dos supermercados sorriam de alivio. Mais amargo foi quando soube da conquista de Miranda por Radonski. Em 2002, em pleno golpe de Estado, foi quem dirigiu os opositores em fúria no assalto à Embaixada de Cuba. Depois de 160 dias preso, libertaram-no. E ainda dizem que a Venezuela é uma ditadura...

Felizmente, há sempre algo que nos anima. O taxista que nos levou a casa bem nos avisou quando entrámos no carro. "Atenção que sou louco", disse-nos. Depois, explicou-nos quem foi Bolívar, Miranda e Sucre. Cantou-nos Ali Primera e deixou a pergunta "como seria a Venezuela, um país tão rico se tivesse um presidente como Fidel Castro que conseguiu fazer tanto com um país tão pobre?"

No próximo fim-de-semana, vou estar agarrado à internet. Não posso estar na Praça de Touros mas estarei a ver e a ouvir, em directo, o Congresso do Partido. Levantarei o punho quando o levantarem e cantarei quando cantarem. Por Abril, pelo Socialismo, um Partido mais forte!

A luta é o único caminho!

sábado, 22 de novembro de 2008

Ska-P em Caracas

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Caracas, a poucos dias das eleiçoes

Em Bellas Artes, ha uma avenida com varios quilometros. Num dos seus muros, a historia da resistencia do povo venezuelano estende-se sem fim. Grupos de jovens dedicaram-se a levantar com spray a memoria historica do seu pais desde o combate ao Imperio Espanhol ao processo bolivariano. Mas esta nao é uma situaçao excepcional. Em toda Caracas, as paredes falam do capitalismo, do imperialismo da revoluçao e do socialismo. Para além do bairro 23 de Enero, onde se encontram os murais mais combativos e internacionalistas, o centro da capital venezuelana esta rasgado pela arte de rua. Na parede da Embaixada da Bolivia, aparecem indigenas donos da sua propria terra. Num viaduto, surge Hugo Chavez a apontar para o céu. Numa das entradas do metro da Ciudad Universitaria, Marx, Engels, Lenine, Bolivar, Fidel, Che, Mariategui, Sandino, Zapata, Estaline e centenas de outros revolucionarios apertam-se para caber na parede. Junto à auto-estrada, surge Guaicaipuro, um dos herois indigenas, e mesmo na baixa da cidade onde se concentra a oligarquia e as lojas das principais multinacionais de roupa e comida nao ha espaço desperdiçado pelos artistas do processo. Em Sabana Grande, o presidente venezuelano ergue o punho e em Chacao, bastiao da oposiçao, as paredes lembram combatentes das FARC e clamam solidariedade com a Bolivia. Uma cidade em que as paredes nao respeitam a indiferença das metropoles cinzentas.

E é nesta cidade agitada que tenho a alegria de viver ha dois meses. Na quinta-feira, visitei a Feira Internacional do Livro da Venezuela e nao me decepcionei. Geralmente, quando vou à Feira do Livro de Lisboa nao tenho dinheiro para comprar nada e preciso de algum tempo para descobrir livros que queira mesmo comprar. Neste caso, havia demasiados livros interessantes e dou conta que uso a expressao "demasiados" propria de quem esta habituado a viver numa sociedade que promove o consumismo de produtos vazios, que promove a ignorancia e a indiferença. Aqui, os livros eram acessiveis e com uma qualidade assustadora. Na entrada, as habituais bancas com t-shirts do Che, de Bolivar, de Victor Jara, de Carlos Ilitch (mais conhecido como Chacal), de Raul Reyes, de Fidel e, claro, de Hugo Chavez. Havia cerca de cem stands organizados por editoras e espaços do Estado. Também havia stands com videos e discos piratas - imaginem-no na Feira de Lisboa. Entre as que mais me agradaram estava a editora basca Txalaparta, onde comprei a traduçao espanhola de Até amanha, Camaradas para oferecer a um amigo venezuelano, e a recente editora cubana Ocean Press. Durante a Feira, também houve um calendario de debates com qualidade promovendo a discussao sobre a literatura e a transformaçao social.

Nesse dia, seguimos para o bairro 23 de Enero. Havia um concerto em homenagem ao musico cubano Benny Moré que ia ser interpretado pela Orquestra Nacional. Antes do espectaculo, uma dirigente da Coordenadora Simon Bolivar agradeceu a presença dos musicos numa favela que nunca tivera direito a desfrutar da qualidade da Orquestra Nacional e a banda abriu as hostilidades. De imediato, como se soubessem dançar desde que nasceram, centenas de pessoas começaram a agitar-se ao som do mambo. E entre a confusao, membros do PSUV distribuiam propaganda eleitoral. Contentes com o sucesso da iniciativa, alguns dirigentes da Coordenadora levaram-nos pelo bairro até uma associaçao recreativa. Compreende-se a dificuldade que tinham os militares e a policia para perseguir os guerrilheiros pelos becos, ruelas e escadas apertadas e ingremes. Como nos contaram, normalmente, ficavam pelo caminho. Na associaçao recreativa, ha um campo interior de terra batida. No centro, dezenas de populares jogam petanca. Ca fora, joga-se domino e cartas nas mesas forradas. Numa das paredes, um mural diz que sem desporto nao ha patria.

Debaixo das arcadas do Bloco 4, Gustavo viu um policia à civil puxar da pistola e começou a correr. Um dos seus amigos, tira o boné e mostra-nos uma cicatriz que atravessa toda a sua careca. Nesse dia, estava ao seu lado e fora alcançado pela coronha da arma. Apesar disso, conseguiu escapar-se. Tenta explicar a historia mas nao consegue porque a cerveja polar ja fez o seu trabalho. Mas Gustavo ajuda e conta a vez em que decidiram recordar Che Guevara no 23 de Enero. A meia-noite do dia 8 de Outubro, como se repete até hoje, todos os blocos lançaram fogo-de-artifico. Contudo, Ramon apontou o seu foguete à janela da namorada de um dos chefes da policia mais brutos daquele tempo. Entrou pela janela e a rapariga saiu porta fora quase nua aos gritos.

Agora, nao ha tiros. Durante anos, os combatentes, e agora a Coordenadora, lutaram contra os traficantes de droga e o ambiente por aqui é calmo. Como numa aldeia em que todos se conhecem. Uma aldeia com dezenas de blocos, cada um com mais de 150 apartamentos. Contudo, falta o Bloco 8. Gustavo explica-nos que quando houve um terramoto na Colombia o governo venezuelano da altura ofereceu o Bloco 8. Ha uma parte do 23 de Enero em Bogota. E acrescenta que nesse Bloco 8 viveram grandes revolucionarios colombianos, entre os quais um dirigente historico do Exercito de Libertaçao Nacional.

No sabado, foi o concerto da Juventude do PSUV. O cartaz atraiu mais de 20 mil jovens que foram para ver The Wailers, Molotov e, principalmente, Ska-P. Quando a banda espanhola subiu ao palco foi a loucura. No ultimo disco, lançaram uma cançao dedicada ao processo bolivariano e a Hugo Chavez que passou vezes sem conta nas radios venezuelanas. A expectativa era muita e os jovens amontoavam-se em cima das paragens de autocarro, das arvores, dos muros, de camionetas e de tudo o que lhes possibilitasse ver melhor o concerto. Entre a massa compacta que gritava "Alerta! Alerta! Alerta que camina la espada de Bolivar por America Latina!", militantes da Juventude Comunista da Venezuela levantavam uma bandeira gigante com a foice e o martelo. Foi ali que conheci Fidel. "Fidel?", perguntei. "Sim, Fidel Castro", respondeu-me. Quando olhei com desconfiança tirou o bilhete de identidade do bolso e comprovou-me o nome, "Fidel Castro". E os Ska-P nao decepcionaram os jovens venezelanos que conheciam todas as letras. O concerto terminou com o rebentamento de foguetes e com milhares de jovens a cantar "orgulloso de estar entre el proletariado, este es mi sitio, esta es mi gente..."